Especialistas veem um ‘limbo normativo’ entre a lei ordinária que tributa dividendos acima de R$ 50 mil e a proteção garantida pela LC 123/2006, com reflexos diretos sobre 20 milhões de empresas optantes
A entrada em vigor da Lei 15.270/2025, que instituiu a tributação de dividendos para pessoas físicas com rendimentos acima de R$ 50 mil, abriu uma contenda jurídica e econômica de grande impacto para o setor produtivo. A norma prevê alíquota de até 10% sobre dividendos que ultrapassem o limite mencionado, mas não tratou explicitamente da situação das micro e pequenas empresas optantes do Simples Nacional, cuja imunidade sobre lucros está disciplinada pela Lei Complementar 123/2006.
O que diz a lei e qual é o conflito
A controvérsia decorre da coexistência de duas normas antagônicas no ordenamento: a Lei 15.270/2025, feita por lei ordinária, que tributa dividendos em determinadas faixas; e o artigo 14 da LC 123/2006, norma complementar que considera isentos do Imposto de Renda, na fonte e na declaração de ajuste do beneficiário, os valores efetivamente pagos ou distribuídos ao titular ou sócio de microempresa ou empresa de pequeno porte optante pelo Simples Nacional, excetuando pró-labore, aluguéis ou serviços prestados.
Por não haver revogação expressa do dispositivo da LC 123, juristas alertam para um ‘limbo normativo’ que pode gerar intensa judicialização sobre autuações envolvendo lucros distribuídos por empresas do Simples.
Argumentos que favorecem a blindagem do Simples
Especialistas que defendem a manutenção da isenção apoiam-se no princípio da hierarquia normativa: lei complementar tem força superior à lei ordinária em matérias que a Constituição reserva a esse tipo de norma. Para João Eloi Olenike, presidente-executivo do Instituto Brasileiro de Planejamento e Tributação (IBPT), a omissão da nova lei oferece argumentos sólidos aos contribuintes: ‘A Lei 15.270/2025, ao não revogar explicitamente a imunidade do art. 14 da LC 123/2006, abre espaço para invocar a isenção de IR sobre dividendos do Simples Nacional.’ Olenike estima chances de vitória entre 60% e 70% para contribuintes em disputas judiciais, com base em precedentes do Superior Tribunal de Justiça.
A advogada Cristina Camara, sócia do escritório Siqueira Castro Advogados, reforça que a disciplina do tratamento diferenciado às micro e pequenas empresas é matéria constitucionalmente protegida e atribuída à lei complementar: ‘Uma lei ordinária não tem força normativa para revogar ou limitar benefício garantido em lei complementar.’
Argumentos que sustentam a cobrança pela Receita e os riscos para os contribuintes
Do outro lado, há quem defenda que a Lei 15.270/2025 não revoga a isenção na esfera da pessoa jurídica, mas institui um novo encargo sobre a pessoa física que recebe os dividendos — uma espécie de Imposto de Renda Mínimo (IRM). Marcelo Costa Censoni Filho, especialista em Direito Tributário e CEO do Censoni Tecnologia Fiscal, explica que a distinção entre pessoa jurídica e física é central: ‘A Lei 15.270/2025 tem natureza de lei ordinária e tributa a pessoa física que recebe os dividendos, não a pessoa jurídica que os distribui.’ Segundo essa leitura, a Receita Federal e o Ministério da Fazenda podem entender que lucros distribuídos por optantes do Simples devem constar na base de cálculo do novo imposto mínimo e, caso ultrapassem os limites, gerar complementação tributária com alíquotas de 0% a 10%.
O professor Arthur Pitman, da Fipecafi, pondera que, do ponto de vista econômico, trata-se da mesma manifestação de riqueza, e que é necessário avaliar se a tributação na pessoa física não esvazia, na prática, os benefícios do Simples.
Impacto econômico, custos do litígio e recomendações para empresas
O potencial alcance do conflito é amplo. Dados do IBPT apontam que o Simples Nacional abrange cerca de 70% das empresas do país, totalizando 20 milhões de optantes em 2025. A falta de clareza jurídica expõe esse universo a autuações fiscais, multas e juros que, segundo especialistas, podem variar de 20% a 150% em caso de encerramento desfavorável a contribuintes.
O cenário previsto é de um contencioso bilionário nos próximos anos, até que haja uniformização da jurisprudência. João Eloi Olenike recomenda preparo financeiro e estratégico: ‘Vale a pena invocar a LC 123 e impor arguição na Justiça, mas a empresa deve se preparar para uma ação que pode demorar até quatro anos e formar poupança para poder enfrentar uma decisão contrária.’ Marcelo Censoni alerta que, até a definição final, empresários terão de decidir entre pagar o imposto e prejudicar fluxo de caixa ou arriscar multas e longos processos judiciais.
Diante da incerteza, consultores tributários orientam revisões de planejamento, documentação rigorosa das distribuições de lucros e avaliação de risco para eventual judicialização. A Receita Federal, por sua vez, deve adotar entendimento uniforme sobre inclusão ou não desses valores na base do novo imposto mínimo, e é provável que a discussão chegue ao Poder Judiciário para definição de entendimento vinculante.
Enquanto isso, empresários, contadores e advogados precisam acompanhar decisões administrativas e judiciais, preparar defesas e considerar provisões financeiras para litígios — movimentos que, na avaliação dos especialistas, elevarão o já conhecido custo Brasil e afetarão investimentos e planejamento de micro e pequenas empresas.
Em suma, a lacuna normativa aberta pela Lei 15.270/2025 promete transformar a tributação de dividendos em um dos grandes temas fiscais dos próximos anos, com impacto direto sobre a segurança jurídica e o dia a dia de milhões de empreendedores.

